Fado


Se a chuva for de luz, atravesso, sem medo das curvas. Aprendi, desde os tempos em que desbravava os caminhos em cima de uma bicicleta, que o segredo é não travar nas curvas.
Nunca tive medo da estrada, largava as minhas mãos do volante para abraçar a vida, descia escadas, cada vez mais, e levantava com a minha força de pouco mais de uma década a roda do chão, pedalando ao mesmo tempo. Caí muitas vezes, colecionei cicatrizes, mas nunca fiquei parada.
Talvez procure, desde os meus breves anos, a luz.
Por breves segundos, creio-a ter encontrado num cinzento cristalino, mas foi tão espantosa quanto fugaz, como que num prenúncio impossível. Talvez seja a realidade mais ilusória que a ilusão real. Ali, estava o desvio que a vida não me deixou fazer, mostrando-me um truque de ilusionismo numa mestria implacável.
Num espetáculo em que se tenta compreender a poética da cena, pensando nós termos lido o bastante, eis que se apagam as luzes sem ainda termos saído da sala.
Dizem ser coisa do Fado, mas não haverá Destino mais ligeiro? Que sina portuguesa a nossa, em que o drama é tão cinzento como o granito das cidades sombrias que, de tão nostálgico, apaixona.
Faço do silêncio a Canção dos dias frios, a Canção da Noite, na esperança de que a compreensão acenda a luz que mostra o que projeta as sombras.
O núcleo da Terra puxa-nos como um iman e não há como fugir. Pensamos controlar os passos que damos sem percebermos que o desígnio cósmico toma conta deles.
É isto que torna fascinante esta caminhada energética, o não fazermos ideia do que se passa fora de nós e que, sem sabermos, nos faz desde antes do ser.
Afinal de contas, o ser é mas o não ser também. Será o não ser o que faz o ser? Talvez o não ser seja o mapa pelo qual estamos a atravessar.
Se assim for, que haja pontos de luz que se liguem em constelações, signos e galáxias. E privilégio é faz existir um Fado para que se possa cumprir em cada um de nós.