A revolução que pôs fim a 48 anos de ditadura

Há 42 anos, na madrugada de 25 de Abril de 1974, o Movimento dos capitães punha fim a 48 anos de ditadura. «E Depois do Adeus», de Paulo de Carvalho, e «Grândola Vila Morena», de Zeca Afonso, foram as senhas para a “revolução dos cravos”. Não querendo deixar passar em branco esta efeméride, o TB relembra o importante significado desta data. Para além da cronologia dos acontecimentos, destacamos a abolição da censura, desencadeada logo após o golpe de 28 de Maio de 1926 e que vigorou até à queda do Estado Novo, assim como o texto de opinião de Manuel Poppe, colunista do Jornal de Notícias, e o relatório do então capitão Augusto Valente sobre a participação no 25 de Abril do Regimento de Infantaria 12, sedeado na Guarda. As fotos são do Centro de Documentação 25 de Abril e os cartoons de João Abel Manta foram cedidos pelo Museu de Lisboa. Na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda, poderão ser apreciados, a partir de amanhã, mais cartoons daquele autor.
- Censura ou exame prévio
liberdade de imprensa foi dos primeiros direitos instituídos com o 25 de Abril, através da abolição da censura prévia no dia da Revolução, que trouxe pela primeira vez um sufrágio verdadei-ramente universal e direitos sociais iné-ditos. «Este jornal não foi submetido a qualquer comissão de censura», lia-se a toda a largura da primeira página do jornal Repú-blica do dia 25 de Abril de 1974. É o próprio programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) que abole a censura e o exame prévio, assinalou há dois anos à Lusa Arons de Carvalho, professor da Universidade Nova, ex-vice-presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social e ex-secretário de Estado da área nos governos de António Guterres.
Numa altura em que se comemora a passagem de mais um aniversário do 25 de Abril de 1974, faz todo o sentido recordar o que foi a censura desencadeada logo após o golpe de 28 de Maio de 1926, tendo vigorado até à queda do Estado Novo. A censura será, aliás, o tema que Fernando Paulouro Neves, que foi chefe de redacção e director do “Jornal do Fundão”, abordará amanhã, a partir das 18 horas, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda.
A partir do 28 de Maio de 1926 a imprensa começou a sentir o efeito da censura prévia*
O exercício do direito de liberdade de imprensa foi objecto de uma Lei do Ministério da Justiça, publicada em 28 de Outubro de 1910. O referido diploma advogava a livre circulação das publicações, sem qualquer caução, censura ou autorização prévia, embora determinasse os limites dessa mesma liberdade de imprensa. A partir do 28 de Maio de 1926 a imprensa começou a sentir o efeito da censura prévia, mesmo antes da legalização desta, em 1933. Visava todas as publicações periódicas, folhas volantes, folhetos e cartazes que tratassem de assuntos políticos e sociais.
O exercício da censura estava a cargo das Comissões de Censura, de nomeação governamental, subordinadas ao Gabinete do Ministro do Interior, por intermédio da Comissão de Censura de Lisboa. Esta Comissão teve como sucessoras, ainda em 1933, a Direcção Geral dos Serviços de Censura, e em 1935, a Direcção dos Serviços de Censura. Com o alargamento das suas competências em 1936, a Direcção dos Serviços de Censura passou a intervir na fundação, circulação, distribuição e venda de publicações, nomeadamente estrangeiras, que contivessem matérias cuja divulgação não fosse permitida em publicações portuguesas. A Direcção dos Serviços de Censura superintendia os Núcleos Regionais de Lisboa, Porto e Coimbra, dos quais por sua vez dependiam as Delegações espalhadas por todo o país.
Em 1940, foi criado, na Presidência do Conselho de Ministros, um Gabinete de Coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação, presidido pelo próprio Presidente do Conselho, que integrava os responsáveis do Secretariado de Propaganda Nacional, da Direcção dos Serviços de Censura e da Comissão Administrativa da Emissora Nacional de Radiodifusão. Competia ao Gabinete de Coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação coordenar as actividades de propaganda e informação dos diversos serviços públicos e assegurar a execução das directrizes governamentais relativas a essas matérias.
A Direcção dos Serviços de Censura foi mantida sob a tutela do Ministério do Interior até 1944, data a partir da qual o Secretariado Nacional de Informação passou a concentrar não só as funções do órgão que exercia a censura, mas também todas as competências do Secretariado de Propaganda Nacional e dos serviços de turismo. Em 1972 a Direcção dos Serviços de Censura foi transformada numa Direcção Geral da Informação e a “censura” recebeu a designação de “exame prévio”.
Parte do Arquivo da Direcção dos Serviços de Censura foi recolhida pela Biblioteca Nacional em 1975. A incorporação desta documen-tação na Torre do Tombo ocorreu a 21 de Abril de 1997, ao abrigo de um protocolo de permuta celebrado com a Biblioteca Nacional, em 3 de Dezembro de 1996.
Por sua vez, a documentação das Delegações de Setúbal, Funchal e Angra do Heroísmo, que se encontrava junto do Arquivo da PIDE, à guarda do Serviço de Coordenação da Extinção da ex-PIDE/DGS e LP, no reduto Sul do Forte de Caxias, foi incorporada na Torre do Tombo em 1992.
Descrição dos arquivos
Inclui, nomeadamente, boletins, circulares, correspon-dência, documentos contabilí-sticos, estatísticas de “cortes”, fichas de publicações proibidas e autorizadas, informações, ofícios, ordens de serviço, processos, provas tipográficas de monografias e publicações periódicas censuradas, relações de publicações proibidas, relatórios, requerimentos, registos de correspondência, registos de entrada e saída de provas tipográficas, resenhas de imprensa, rádio, e televisão, que dizem respeito às actividades da Direcção dos Serviços de Censura, das respectivas Delegações de Angra do Heroísmo, Funchal e Setúbal, à actuação da PIDE e da Legião Portuguesa e a diversas questões políticas, de âmbito nacional ou internacional. Integra também as actas da Comissão para Análise dos Documentos da Extinta Comissão de Censura.
“Jornalismo de entrelinhas”
iludia censura com meias-palavras**
A 18 de Março de 1974, a notícia do jornal República sobre o jogo Sporting-Porto só aparentemente falava de futebol. No “jornalismo de entrelinhas” imposto para contornar a censura, o clássico serviu de metáfora ao golpe militar falhado dois dias antes.
Quem conseguiu interpretar o que ficou por dizer, percebeu que o texto estabelecia implicitamente uma relação entre a derrota do Futebol Clube do Porto e o insucesso do golpe iniciado por uma coluna militar das Caldas da Rainha que tentou derrubar o regime.
Na notícia, os militares «eram» os jogadores do Norte que «avançaram sobre Lisboa», sem conseguir derrubar o «adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado» e que contava ainda «com uma assistência fiel». Apesar do resultado negativo, o repórter do diário República, um dos jornais mais conotados com a oposição, acabava o texto deixando uma nota de confiança aos «jogadores» derrotados: «perdeu-se uma batalha, mas não se perdeu a guerra».
A mensagem de esperança foi transmitida com sucesso a todos os leitores e, efectivamente, a «equipa da capital» acabou por perder o «campeonato» cerca de um mês depois, com a Revolução de 25 de Abril.
A crónica do jogo entre o Sporting e o Porto, que conseguiu passar incólume pelo lápis azul do regime, é hoje muitas vezes apontada como exemplo dos verdadeiros “malabarismos” de escrita a que os profissionais da comunicação eram obrigados para iludir a censura. «Tínhamos sempre de utilizar vários truques de escrita para que as coisas saíssem, recorrendo, por exem-plo, a metáforas e analogias. Era o chamado jornalismo das entrelinhas», contou em 2004 à agência Lusa Figueiredo Filipe, ex-redactor do já extinto jornal República.
No entanto, para conseguirem «passar» pelos censores, algumas peças tinham, por vezes, uma escrita de tal modo metafórica que a mensagem implícita dificilmente era apreendida pelos leitores. «Às vezes, a informação que queríamos transmitir estava tão nas entrelinhas, tão encriptada que os censores, de facto, não a percebiam, mas a verdade é que grande parte do público também não», disse à Lusa Fernando Correia, jornalista do Diário de Lisboa até 1974.
Segundo o jornalista, a maior parte destas informações subli-minares eram apenas detectadas e apreendidas por uma «elite de leitores mais politizados», já que exigiam um enorme exercício de interpretação das meias-palavras, das entrelinhas e do que ficava por dizer.
No entanto, apesar das “artimanhas” utilizadas por alguns jornalistas, a grande maioria das peças acabava por ser censurada no exame prévio a que estavam sujeitas. «Em alguns jornais, sobretudo nos que estavam mais ligados à oposição como o República ou o Diário de Lisboa, cerca de um terço do material era censurado, o que representava um enorme prejuízo porque os tipógrafos tinham de fazer três e quatro composições até estar aprovado o resultado final», explicou em 2004 à Lusa o então director do Museu Nacional da Imprensa, Luís Humberto Marcos.
Além dos cortes totais ou parciais, a censura recorria também ao chamado corte demorado, sujeitando a notícia a uma análise mais aprofundada que chegava a demorar três a quatro dias, fazendo-a perder a actualidade. «Sempre que alguma notícia suscitava mais dúvidas aos censores, que não deviam propriamente muito à inteligência, ela ficava retida durante alguns dias. Isso era uma forma de não ser publicada, já que acabava por perder toda a sua pertinência», explicou Fernando Correia.
Além de peças jornalísticas na imprensa, na rádio ou na televisão, o regime censurou igualmente milhares de obras literárias, músicas e filmes que pudessem pôr em causa a sua sobrevivência, mobilizando a oposição. «A censura acabava por funcionar como uma “super-polícia” do regime, sendo claramente a máquina mais aperfeiçoada do Estado Novo», afirmou Luís Humberto Marcos, acrescentando, a título de exemplo, que só em Junho de 1965 foram apreendidos mais de 14 mil livros numa rusga à editora Europa-América.
Porém, a “máquina” que foi cuidadosamente aperfeiçoada ao longo de 48 anos sucumbiu em apenas algumas horas, insta-lando um ambiente de euforia nas redacções, pouco propício ao distanciamento jornalístico.
** Agência Lusa
*Fonte: Associação dos
Amigos da Torre do Tombo