Olha para mim
Olha para mim e diz-me se esta primavera me trouxe a cor do poema. Se o poema ainda sou eu, na constância do velho teorema.
Não olhes para mim que eu nem se ainda estou cá, se o que digo é falácia propositada ou se alguma verdade há.
Olha para mim e revela-me o quanto ainda a noite te fala de paixão. Esconde-me das balas da incerteza que me perfuram na solidão.
Não olhes para mim que eu já fui baleada, que este sangue que me escorre já correu em tua morada.
Olha para mim que ainda sei quem sou, que me lembro do tanto quanto em segredo te dou.
Não olhes para mim que eu já não piso este chão, que eu frequento lugares onde pessoas suspeitas estão.
Olha para mim e finge que me conheces, esforça-te no diagnóstico da medicina que não fizeste.
Não olhes para mim que já nem sei se existo, se o que vejo é real ou se sou as palavras que me minto.
Olha para mim que até parece que acredito que as pessoas são boas e que não me falha o instinto.
Não olhes para mim que estou a tentar ocultar a Arte, que neste mundo uma Obra vale menos que uma tarte.
Olha para mim que estudo Filosofia, que sou a única salvação num mundo sem Poesia.
Não olhes para mim que eu não sei ser sem Amor, que me equivoco em planos de caminhos onde não se ouve clamor.
Olha para mim que sou a única a acreditar: no Fado, no Conto Encantado, na Pena e no Arco a Flamejar.
Não olhes para mim que não sei se resisto ao ferimento da vida, ao mármore, ao granito e ao xisto.
Olha para mim que só eu existo para lá deste mundo vão em que ainda insisto.