Ser ou Não Ser?

Chegou ao fim o sonho de se ser Capital Europeia da Cultura em 2027. Uma vez mais, a Guarda fica para trás no que ao Futuro diz respeito. É nisso que somos bons, em ocuparmos os lugares do fundo.

Numa análise crua, verificamos que continuamos estagnados em diversas áreas, enquanto as cidades pares se vão destacando.

Há uns tempos, alguém, que corre o país de norte a sul, me dizia: “A Guarda não existe!” e, como quem quer fugir do Fado, procurei argumentos para contradizer esta dura premissa, tendo falhado a tentativa.

Lembro-me do sentimento de frustração que me invadia, a mim e aos meus amigos, aquando a nossa primeira década de vida, por não termos um shopping na cidade, por não termos uma cadeia de fast-food, por termos que esperar um ano inteiro para podermos ir ver o mar nas férias grandes. Crescemos e vimos, muito lentamente, um shopping erguer-se. As lojas pelas quais esperávamos nunca chegaram, mas fomo-nos acostumando ao que tínhamos, continuando a ter que procurar noutras cidades as ofertas que na Guarda não encontrávamos.

Também chegou a tão esperada cadeia de fast-food, não me recordando se antes ou depois do shopping, porém ficou demasiado longe para quem ainda não tinha carta de condução nem pulmões capazes de aguentar o percurso ida e volta de bicicleta.

Prestes a terminarmos o ensino secundário, a escolha mais importante das nossas vidas: o curso superior. Os que nele investiram viram, nesta etapa, uma oportunidade para se poder viver, finalmente, o espírito citadino que não se havia encontrado na Guarda. Já o merecíamos e fomos muitos os que fomos. Como é natural, a maioria ficou nas diferentes pólis, regressando à Guarda por questões meramente familiares e em visitas curtas, porque “a vida” estava noutro lado.

É esta “vida” que, por muito que se procure, não se encontra por aqui. Somos um acumular de sucessivas más gestões políticas, de falta de visão, de objetivos, de criatividade, de reinvenção, de investimento, de cuidado e de capacidade. Tudo isto gera o deserto populacional, intelectual e cultural que vivemos e que agravará, a cada ano, se não existir uma reforma profunda.

Continuamos a dizer a quem trazemos cá: “Uber? Estás na Guarda, isso ainda não chegou cá”; “Restaurantes vegetarianos? Estás na Guarda, não há mercado.” “Um espaço cultural onde se pode passar um dia inteiro, com um digno espaço verde, à semelhança de Serralves ou do Palácio de Cristal, por exemplo? Temos o “parque dos patos”, mas sem patos e sem cultura, serve?” “Onde é que vocês fazem os grandes eventos, sem ser no TMG? Já tivemos o Marco Paulo em concerto numa tenda com enchidos à venda.”

Não é esta a cidade que nos faz querer ficar ou regressar e creio que estamos todos conscientes disto. Merecemos e precisamos de mais. De mais Cultura, de mais Arte, de mais emprego qualificado, de mais ideias, de mais desafios, de mais investimento, de habitação com melhor qualidade, de espaços públicos convidativos que proporcionem bem-estar, de um centro histórico reanimado, protegido e revigorado, de criação de estímulos.

Precisamos que se olhe para a Guarda e se elabore um diagnóstico certeiro, para se iniciar, com urgência, a recuperação. Tal não poderá ser feito somente pela classe política, nem apenas com “os de cá”. É preciso abrirmos a porta desta garagem fria e cinzenta e deixarmos entrar todos quantos acrescentem, os de cá que estão cá; os de cá que estão fora; os de fora que poderão vir para cá; os de fora que jamais virão para cá, mas que têm outro campo de visão e qualidades que nos serão benéficas.

Não posso deixar de saudar um dos poucos alentos que ainda tenho, ao estar por cá – o trabalho do Teatro Municipal da Guarda -, que me faz acreditar que ainda não morremos por inteiro e que somos tão dignos de Cultura quanto os outros. Que não devemos ser menores pelo simples facto de estarmos nesta cidade. Que nunca lhes falte o financiamento que um equipamento desta qualidade merece. E que nunca se olhe para a Cultura como um gasto, porque, pelo contrário, a Cultura é um ganho, o Maior que poderemos ter. Que se saiba investir e construir Conhecimento, porque é com ele que a História se escreve.

Não sei se este é um relato de prenúncio da minha despedida da cidade da Guarda, camuflado pela crença, vinda de recônditos lugares, de que é possível, ainda, construírem-se caminhos que conduzam à Virtude. Contudo, grita-me a consciência de que não os poderei construir sozinha nem ficar, serena, ao lado de D. Sancho I a dissertar o porvir. Mais do que nunca, o Futuro é Agora.

Em jeito de incitação à reflexão conjunta, termino com o poema “Nêspera”, de Mário Henrique Leiria:

“Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia

chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a

é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece.”

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